quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Nunca mais

Vê-la dormindo me trazia um pouco de paz. Depois de um dia como aquele, desejava que todas as noites terminassem assim. Nossas brigas deveriam cessar, nossa relação estava ficando desgastada por causa disso. Toda vez que ela ameaçava ir embora, meu coração gelava. Nunca fui homem o bastante para pedi-la com palavras objetivas que ficasse. Nunca implorei para que não fosse embora. Fingia indiferença, era irônico o tempo todo com ela, e via o quanto aquilo a irritava. Ela realmente nunca teve coragem de partir, falava muito e fazia pouco. Ameaçava todo dia, toda hora, a cada briga nossa, no fundo esperando uma reação diferente minha, talvez precisando saber que a queria comigo para ficar mais segura. E até hoje me arrependo de não ter dito tudo o que realmente queria. Era uma gritaria repulsiva, seja por ciúmes ou por qualquer outro motivo. Ela arranjava briga por tudo, fosse por eu não me lembrar de algo que ela havia me contado ou por não parar de ser irônico, cínico, o tempo todo com ela. Odiava quando ela me tratava como um objeto, como uma propriedade dela, apesar de não termos nada significantemente sério, e isso nos causava mais brigas. Acabava sempre em choradeira, as lágrimas corriam involuntariamente pelo rosto dela e aquilo me dava náusea, sentia nojo de mim mesmo por magoar ela daquele jeito. Sem perder a postura, continuava sério e indiferente perante sua famosa ceninha, que se repetia sempre. Pelo menos continuava assim por fora. Por dentro, eu desmoronava a cada dia que passava. Ela desistia depois de alguns minutos e corria pro meu colo, ficava lá me abraçando e beijando meu pescoço, pedindo desculpas por algo que nem era culpa dela. Logo vinha o momento de raiva, levantava e dizia que iria embora, que depois que saísse por aquela porta não voltaria nunca mais, dramatizava todas as suas palavras. Eu não me movia. Ela esperneava e chorava mais, muito irritada. “Dá pra você fazer alguma coisa? Vai ficar aí me olhando? Não liga pras nossas brigas?” – ela gritava. “Não” eu respondia. Aquilo bastava pra começar o fim da briga, ela saia correndo na minha direção, me estapeando e falando coisas incompreensíveis, feito uma louca. Eu segurava seus braços que relutavam contra os meus, a pegava no colo e jogava na cama, e ali a segurava ate que parasse um pouco. Depois vinha os beijos, o amor, a noite. E finalmente chegávamos a esse ponto, ela dormia pacificamente do meu lado.
De repente começou tudo de novo. Ela acordou, sorriu, me deu um beijo. Sempre tentando arrancar um sorriso meu. Fiz uma brincadeira por causa do seu cabelo desgrenhado e ela riu. Conversamos um pouco e ela quis saber porque eu não chorava. “Eu não choro, acho desnecessário” respondi. Ela não se satisfez. Incomodou tanto, mas tanto. Disse que sempre havia a primeira vez. Eu a lembrei que sobre primeiras vezes conhecíamos bem, havia sido o primeiro para ela em muitos sentidos. Isso nos fez rir, ela me deu um abraço forte, encostou sua testa na minha e perguntou de novo como eu aguentava viver sem chorar, que o choro era um desabafo humano. Não me aguentei, fiz uma piadinha qualquer sobre aquilo e fui extremamente grosso, mas ela já estava acostumada, nem retrucou. Estúpido. Só vai dar valor quando perder – a ouvi sussurrar, mas ignorei. Ouvi seu suspiro desapontado e fui para a cozinha pegar algo para comermos.
“Quer suco de laranja?”, “não amor, obrigada”. “Hum, quer panqueca?”, silêncio. “Quer ou não?”, nada de resposta. Fui até o quarto e não a achei. Banheiro, sala, quarto de hóspedes. Nada. “Onde essa safada de meteu?” pensava. Liguei pro celular dela, desligado. A bolsa dela também não estava ali, devia ter ido embora. Como sempre, indiferente, sentei na frente da televisão e fiquei a tarde toda assistindo um jogo de futebol. No fim do segundo tempo, meu celular começou a tocar. Deve ser ela, não vou atender, quem mandou sumir. Tocou de novo, e mais uma vez. Peguei pra ver o número, ela não costumava ligar com tanta insistência. Desconhecido. Resolvi não atender. Passada uma meia hora, minha campainha tocou. Sabia que ela ia voltar. Fui até a porta e a abri, pronto pra ser ligeiramente grosso e mandá-la para casa, me deixar em paz por um tempo, ia dizer que estava de saco cheio das nossas brigas e que queria ficar sozinho um pouco. Quem pairava na minha porta não era aquele corpo pequeno com os dois olhinhos verdes e cabelo escorrido. Era uma senhora mais velha vestida de branco, e um homem, esse vestido de preto. Antes de qualquer coisa, a mulher me pediu pra ficar calmo que iriam me explicar tudo e depois gostariam que eu os acompanhasse até o hospital para reconhecer um corpo. Depois disso, tudo aconteceu tão rápido que não me recordo direito. De repente eu estava sentado no sofá, incrédulo, a senhora falava algo, cabisbaixa, mas eu não conseguia ouvir nada, via apenas seus lábios se movendo lentamente. Senti enjoo e uma ânsia de vômito, corri para o banheiro e não saiu nada. Fiquei lá parado apoiado na pia enquanto pinguinhos de agua caiam ali. Olhei pra cima e vi que os pingos vinham de mim. Tentei não chorar, mas aquilo era muito mais forte que eu, saia deliberadamente como se eu não pudesse controlar o que estava sentindo. Com o rabo do olho, espiei o meu quarto, vi minha cama bagunçada. Não meu amor, você não pode me deixar. Não agora. Tenho muita coisa pra dizer. Por favor, esteja bem. Desejei com todo meu coração. Procurei desesperadamente as coisas dela que ela deixava na terceira gaveta do meu armário, mas não havia nada ali, ela levou tudo. Acompanhei os senhores até o hospital. Reconheci seu rosto, impossível não reconhecer. Peguei na sua mão, que dessa vez se encontrava gelada, aquela mão que me acalmou e me esquentou, que me fazia ficar louco de raiva ou louco de amor. Ela estava amassando algo, uma foto. A nossa foto. Tirei dela, sem conseguir conter as lágrimas de novo. Atrás estava escrito eu te amo, não importa o que aconteça, vou sempre te amar. Ela tinha me dado aquela foto no meu aniversário, como não pude dar importância pra simples palavras? Que hoje fazem toda a diferença. Queria ter dito tudo o que se passava aqui dentro, queria ter chorado pelo menos uma vez com ela, fosse de alegria, raiva ou tristeza. Eu tive que perder pra dar valor. Desejei tanto que as brigas cessassem, e agora que não havia mais brigas, desejava-as toda manhã. Sentia falto daquele cheiro, aquele sorriso, aquele beijinho de bom dia. Saibam dar valor enquanto há tempo, tudo acontece tão rápido que sai do controle, e não há nada que possamos fazer. O que eu não faria por uma segunda chance agora... Não podia imaginar que, quando ela disse que depois que saísse por aquela porta não voltaria nunca mais, esse nunca mais realmente duraria pra sempre.

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